Caminho de Santiago – em 6 memoráveis etapas

Fazer o caminho de Santiago era uma vontade de longa data. Por entre justificações mais válidas e outras menos para adiar, chegámos a um momento em que a vontade e o instinto diziam para ir, sem olhar para trás. E, de uma semana para a outra, preparámos as mochilas, recuperámos os planos já feitos para intenções anteriores e fomos. Cada etapa tem a duração que mais se ajusta aos objetivos de cada peregrino. No meu caso, fez sentido planear o itinerário por forma a caminhar e ainda ter tempo e força para viver o destino, que é como quem diz, comer, beber e fazer algumas visitas culturais básicas. Em 6 etapas de aproximadamente 20 kms cada (mais ou menos 6 horas a caminhar), cumprimos o desejo e aproveitámos cada passo, sem pressas. Para quem o quiser fazer ficam aqui as etapas percorridas:

Primeira etapa: Valença > Porriño (21,7 kms)

Comboio Porto-Campanhã: 08h15-09h56. O percurso passa por Tui que é bem mais bonita do que imaginava, com uma Catedral imponente, por campos verdes e pequenas aldeias interiores. O caminho está muito bem identificado, não é necessário mapa para orientação. Chegámos ao albergue em aproximadamente 6 horas, e, em modo automático, quase profissional, tomamos banho, lavamos a roupa e saímos para comer e preparamo-nos para usufruir do destino.

Dica para almoçar: queria um hambúrguer que às 4 da tarde, me servisse de almoço e jantar. Encontrei tudo o que desejava no restaurante Hamburguesería Fran. No final de contas, o hambúrguer até nem foi o melhor que já comi, mas foi o que melhor me soube, por entre truques de magia feita pelo empregado/proprietário e bebidas que tivemos que insistir para pagar. O caminho é isto, é cruzarmo-nos com pessoas que nos ficam na memória e que nos fazem desejar ficar mais tempo.

Segunda etapa: Porriño>Redondela (16 kms)

Apesar de serem menos, os quilómetros são mais difíceis de fazer. Esta etapa tem, para mim, a descida mais difícil do caminho, 10 minutos a descer uma inclinação exagerada de fazer doer os músculos das pernas mais treinadas. Como em quase todas as etapas, na altura certa surge um sítio para tomar uma dose de cafeína e comprar a vieira que nos identifica o propósito da caminhada.

sdrSaímos por volta das 06h00 da manhã e chegámos antes do albergue abrir, o que obriga a fazer tempo e adiantar trabalho impossível que é encontrar um restaurante com cozinha aberta para fazer o mais simples pan con tomate antes do meio dia. A acrescentar o facto de ser feriado e de supermercados, e grande parte dos estabelecimentos comerciais estarem fechados, aprendemos que não compensa chegar muito cedo.

Dica para almoçar: A Cova. Serviu o melhor vinho branco da jornada, a acompanhar uns belíssimos peixinhos fritos e uma tenra carne estufada. A princípio parecia um atendimento um bocadinho distante, mas rapidamente percebemos que é a forma “bruta”/simpática que caracteriza tantos galegos com quem nos cruzamos e que acabam companheiros de mais um copo de vinho. De vez em quando ainda falamos deste almoço, que é bom sinal.

Terceira etapa: Redondela>Pontevedra (20,3 kms)

Diz-se que é uma das etapas mais bonitas, porque por entre eucaliptos, vinhas e hortas, surge a ria do lado esquerdo ao mesmo tempo que o dia amanhece. Pontevedra é umas das maiores cidades do caminho e a nossa chegada coincidiu com a (grandiosa) festa anual.

sdr

 

dav

A cidade é bonita e cheia de vida, pelo menos nesta altura do ano. Trouxe no estômago as mais gordas e saborosas ostras que já comi.

Dica para as mais fabulosas ostras: La Vinoteca O Bioco

Quarta etapa: Pontevedra>Caldas de Reis (23 kms)

Sair de Pontevedra ainda de noite e seguir as luzinhas azuis cravadas no chão de pedra faz-nos sentir que fazemos parte de um clube especial.

O percurso tem muitas pedras/brita e não sendo a etapa mais difícil, para mim, foi a mais chata, por ser longa e estar cansada de ver milho, vinhas, girassóis, mais milho, mais vinha e mais girassóis. Foi a etapa que mais vezes parei para tirar as pedras das sapatilhas. Talvez porque a etapa quase não tem desníveis, e inclui muita estrada (em comparação com as anteriores) o corpo acusou a monotonia. Quando cheguei ao fim, depois de fazer o obrigatório (banho, lavar a roupa e almoçar), aterrei num colchão fraquinho, mas numa siesta fortíssima.

Quinta etapa: Caldas de Reis > Padrón (18,5 kms)

O objetivo do dia era conhecer o Pepe e comer os pimentos padrón! Acho que foi a etapa mais fácil de fazer, tranquila, muito verde e simpática.

70880742_509584569602919_5328294027500453888_n

Padrón recebeu-nos com o barulho e os cheiros da feira semanal à beira rio, os piquinhos dos pimentos padrón e um beijo na testa do tio Pepe. É indescritível a singularidade e simpatia deste último que nos faz sentir que de alguma forma já temos a bênção para continuar! Obrigatório!

Sexta etapa: Padrón > Santiago de Compostela (25,2 kms)

Na última etapa é quase obrigatório sair com tempo suficiente para chegar ao destino antes das 12h00, mesmo a tempo de assistir à missa do peregrino. Emocionalmente é a etapa que mais mexe. É impossível colocar em palavras a mistura de sensações que vão surgindo ao longo dos 25 kms. Destaco a sensação mais nítida e mais marcante que é a falta de vontade de chegar ao destino. Depois de 120 kms feitos parece que não se quer chegar, o corpo parece que levita e o tempo que está a passar mais rápido de que desejaríamos. Parámos algumas vezes, ainda não sei bem se para descanso ou para parar o tempo por mais um bocadinho.

71674283_502585750561165_6035534966304014336_n

71783169_708688292933068_3280205749615067136_n.jpg

71374625_930911210610770_5536250391148101632_n

71275166_1429698630516336_7423200983670325248_n.jpg

Quando ao longe, se vê o topo da Catedral, dá um friozinho na barriga e a chegada à Praça do Obradoiro junto com tantos outros peregrinos, num ambiente de conquista, emoção e alguma dor, aperta muito o coração. 70882930_745972162514722_3516229857686061056_nGostava de saber se há alguém que consiga chegar sem se emocionar, sem uma lágrima. É impossível! Parámos ali para absorver, num momento de pausa introspetivo e deixámo-nos ficar e a missa fica para o dia seguinte.

Quem fez o caminho, já sabe de cor e salteado que não se regressa da mesma forma que se começou. Não tive uma epifania, não tomei decisões para a vida, embora pudesse ser muito romântico assumi-lo. Cada pessoa fará um caminho diferente e terá um propósito e emoções próprias. No meu caso, a sensação passou de um entusiasmo e uma certa ingenuidade de principiante para um sentimento de pertença a qualquer coisa que não sei explicar o que é, talvez a uma forma e uma vontade de estar naquele presente, que se prolonga até hoje. Sem noticias da atualidade, telefonemas,  emails e redes sociais, a mente vai aberta a absorver cada passo, cada quilómetro, cada pormenor do espaço e todos os nasceres-do-sol da jornada. Entranha-se de tal forma que o desejo de chegar ao fim começa a desvanecer, apesar do esforço físico. Cada peregrino com quem me cruzei tem, certamente, uma história, ninguém está ali só porque sim, e isso nota-se nos rostos, no vagar, no esforço, na alegria e no entusiasmo ou falta dele quando se desejam “buen camino”. Consigo compreender o vício n’O Caminho, porque é certo que não ficaremos por aqui!

70847925_431579070808451_5661701167478996992_n

Sara

Deixe um comentário

Site no WordPress.com.

EM CIMA ↑